Isabella Gomes Santos
Graduada em Medicina, atuou na Atenção Primária à Saúde e Saúde Indígena com ênfase na promoção de saúde por meio de projetos de desenvolvimento comunitário.
Trabalhou no Território Indígena Tupinikim-Guarani como médica de 2021 a 2024, período no qual foi coordenadora da Oficina Mbómonhang, projeto a partir do qual surgiu o coletivo Ma’enduara.
No momento, dedica-se inteiramente à pintura.
A conexão entre dois mundos pela oralidade.
Retratos Guarani.
Materializar histórias,
eternizar memórias
para aqueles que
ainda virão a ser.
Isabella Gomes Santos
12.02.2025
Essa foi a motivação primordial que levou à concepção do coletivo Ma’enduara. Registrar as histórias de anciãos do território é uma forma de contribuir para a preservação e a transmissão de saberes às futuras gerações dos próprios povos aos quais essas memórias pertencem.
Como dito pelo próprio ancião retratado nesta série:
“[…] nós vamos contando as coisas
um para o outro, e assim
vamos lembrando as coisas”.
Essa fala, que, à primeira vista, para o ouvinte menos atento, pode parecer despretensiosa, traz consigo uma riqueza perceptiva profunda, um indício de como a oralidade tem um papel fundamental nas formas expressivas indígenas
e na manutenção da sua cultura.
Dispondo estas duas obras conjuntamente, a artista busca enfatizar a importância da transmissão do conhecimento intergeracional pela contação de histórias, e o protagonismo dado à oralidade e a integração de linguagens tradicionais e contemporâneas no trabalho documental desenvolvido pelo coletivo.
Ainda, convida o espectador a refletir sobre a interculturalidade, a arte contemporânea e seu papel social, o equilíbrio de poder e a autonomia dos povos na construção de narrativas a seu respeito, e, em última instância, a valorização da cultura dos povos indígenas brasileiros.
CARTA ABERTA
Às próximas gerações,
e, em especial,
Kali nhy’ã.
A criança é a síntese, a convergência dos três tempos: passado, futuro e presente.
A sua presença se torna a lembrança viva da nossa ancestralidade, a materialização da nossa esperança, e a imposição do momento presente como o único existente, onde a nossa ação é possível e necessária.
Ao crescer, não se esqueça de permanecer um pouco criança. Digo no sentido de viver e ver o mundo com deslumbramento e vigor. Não perca o encantamento pela vida, a irreverência e a curiosidade que nos levam a desvendar mistérios e despertar ideias, e a sinceridade ao demonstrar o amor.
Quando você ler esta carta talvez eu esteja me aproximando da minha senescência, ou não esteja mais por aqui, então gostaria de deixar alguns pensamentos e conselhos registrados.
Inclusive, fizemos todo um trabalho pensando nisso, em criar uma ponte entre vocês, do futuro, com antepassados do seu povo. Talvez as pessoas que vocês assistirão nessas gravações já não estarão entre vocês, mas, de certa forma, elas permanecerão por meio de suas histórias, relembrando-os da sua própria história, enquanto indivíduo pertencente a um povo e um território.
Nunca se esqueçam, e se orgulhem da luta e resiliência dos seus ancestrais, que há mais de 500 anos lutam pelo direito de viverem à sua maneira.
A realidade muda, novos desafios virão, e vocês terão que se reinventar, mais uma vez. Longe de ser o fim, a luta se impõe como o meio de se viver verdadeiramente. Mas sempre existem caminhos, e não adianta nos abstermos. O seu povo me ensinou isso. Não aconselho a insensibilidade e a apatia como uma opção. Ignorar a luta só te levará a conquistar uma paz vazia e ilusória.
Mas mesmo em luta [outro ensinamento que aprendi com o seu povo], nunca deixe de festejar, celebrar e reverenciar a vida. Cante, dance, adorne-se, também como forma de resistência.
A arte é um meio de comunicação e um remédio poderoso. Não se esqueça disso. Use essa ferramenta não só para aliviar as dores existenciais, mas para perpetuar saberes, conectar pessoas, semear ideias e fomentar mudanças.
Nós, como anciãos e futuros anciãos, estaremos aqui, de alguma maneira, para lembrá-los desses ensinamentos.
Vocês terão muitos desafios pela frente. Tenho que admitir que o cenário por aqui não é lá dos mais otimistas. Nossa geração tem sucessivamente falhado em garantir melhores condições para a vinda de vocês, por motivos diversos. Eu lamento por isso.
À medida que vocês forem crescendo, vocês perceberão o quanto nós, seres humanos, somos seres complexos e dotados de habilidades extraordinárias, mas com um impulso de vida, que pode ser usado tanto para a criação, quanto para a destruição.
Por aqui, a maioria das pessoas tem se esquecido das coisas que mais nos importam, em favor de uma cultura hegemônica pautada pelo individualismo e consumismo. Parece que paira no ar uma sensação generalizada de confusão, incerteza e mal-estar social. Numa corrida desesperada pela “super”vivência e numa busca sem fim por um ideal de felicidade, criamos um subsistema regido por leis próprias dos homens, como se pudéssemos nos esgueirar das leis do sistema natural, produzindo uma espécie de pensamento coletivo esquizoide.
Mas alguns de nós ainda resistem, e buscam viver a vida de forma mais harmoniosa com a natureza e seus pares. Você é fruto de algumas dessas pessoas admiráveis.